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Discurso do Reino Unido na ONU em 2023: Resumo e Análise

Discurso do Reino Unido na ONU em 2023: Resumo e Análise
O chanceler do Reino Unido, Oliver Dowden, discursando perante o Debate Geral da Assembleia Geral da ONU, em Nova York. Imagem por UN Photo.

Em 22 de setembro de 2023, o chanceler do Reino Unido, Oliver Dowden, discursou no Debate Geral da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York. Estes foram os principais pontos abordados em seu discurso:

  • O Reino Unido tem oferecido ajuda humanitária ao Marrocos e à Líbia, porque eles têm enfrentado terremotos e enchentes.
  • As “questões do momento” são a mudança do clima, o desenvolvimento após a Covid-19, o tráfico humano e a invasão da Ucrânia.
  • A “brutal invasão” da Ucrânia pela Rússia tem consequências sentidas em todo o mundo, particularmente nos países em desenvolvimento atingidos pela falta de alimentos. A guerra pode ser encerrada pela Rússia logo, mas, enquanto isso não ocorre, “o Reino Unido ficará ao lado da Ucrânia” pelo tempo que for.
  • Outro desafio importante é a inteligência artificial, porque ela mudará todos os aspectos da vida. A IA pode ser uma força pelo bem comum, ajudando a ciência, democratizando a tecnologia, e tornando possível resolver os problemas mais preocupantes de nosso tempo.
  • Todavia, a IA também representa certos perigos, como facilitar os ataques de hackers e a manipulação de eleições por perfis falsos na Internet, bem como o perigo de “perder o controle das próprias máquinas”.
  • Nesse sentido, o Reino Unido tem participado de iniciativas como a Cúpula Mundial sobre Segurança da IA, o Processo de Hiroshima do G7, e a Parceria Global sobre IA. Todos os governos devem trabalhar em conjunto para regular essa nova tecnologia, porque seus riscos e suas oportunidades, em larga medida, ainda não são conhecidos. Além disso, uma vez que a tecnologia de IA tem evoluído rapidamente, os governos devem reunir-se e debatê-la regularmente.
  • O Reino Unido está em uma “posição única” para aproveitar as oportunidades de IA, graças às suas “companhias de tecnologia de ponta” e às suas “universidades líderes mundiais”.
  • O governo britânico também tem uma Força-Tarefa de Ponta sobre a IA, composta por especialistas que tentam invadir os modelos de IA para torná-los mais seguros. A intenção do governo é que esse órgão se torne internacional.
  • Muitas “tecnologias de ponta” foram desenvolvidas em nações onde se respeita a liberdade de expressão, e uma “cultura de regras e transparência” é essencial para fazer com que a inteligência artificial seja tanto inovadora quanto segura.

Análise do Discurso

Oliver Dowden, responsável pela política externa do Reino Unido, representou o primeiro-ministro britânico Rishi Sunak na Assembleia Geral. Como de costume, ele começou seu discurso falando sobre eventos recentíssimos — os terremotos e enchentes que afligiram o Marrocos e a Líbia. Em seguida, ele mencionou as “questões do momento”, na sua opinião. Provavelmente, a mudança climática, o desenvolvimento, a pandemia de Covid-19 e a invasão da Ucrânia estão na lista de prioridades internacionais de todos. Entretanto, a menção ao tráfico de pessoas parecia um pouco estranha — afinal, a Grã-Bretanha não é uma ilha isolada?

O problema é que, desde 2022, tem havido sucessivos recordes de migrantes irregulares tentando cruzar o Canal da Mancha e chegar à Inglaterra. Trata-se de pessoas que fogem de conflitos como o na Ucrânia e que acabam se mudando de um país europeu para o outro, em busca de uma vida melhor. Em alguns casos, esses migrantes pagam grandes quantias de dinheiro para traficantes de pessoas, visando a chegar à Inglaterra por meio de barcos.

A situação na Ucrânia ganhou certa atenção de Oliver Dowden, que a condenou fortemente, considerando-a uma “invasão brutal” e o “mais hediondo ataque imaginável” a tudo aquilo que as Nações Unidas representam. Mais importante do que isso, foi ele prometer que o Reino Unido continuará a financiar a defesa da Ucrânia pelo tempo que for necessário.

Em grande parte, o discurso de Dowden focou na temática da inteligência artificial, nas suas oportunidades, nos seus perigos, e na sua regulação apropriada. O chanceler não falou nada que não seja amplamente conhecido, como a natureza dual da inteligência artificial — boa ou má, a depender das circunstâncias. Ele parecia interessado em promover o Reino Unido como um grande ator no campo da IA, o que negligencia o fato de que a maioria dos avanços nesse campo têm sido realizados nos Estados Unidos. Além disso, ele parecia empenhado em divulgar a Cúpula Mundial sobre Segurança da IA, que ocorrerá em solo britânico em novembro de 2023, talvez como forma de atrair pessoas para presenciá-la.

Ao final do discurso, Dowden ressaltou a relevância de uma “cultura de regras e de transparência” para tornar a IA tanto inovadora quanto segura. Isso talvez tenha sido uma referência à China, uma superpotência da inteligência artificial que, certamente, carece de uma cultura nesses moldes. De todo modo, esse argumento foi fraco, dado que modelos de AI que sejam transparentes poderão ser mais facilmente transformados em instrumentos de ataque por aqueles com má-fé.

Infelizmente, o discurso do Reino Unido focou tanto na IA, trazendo tão poucas informações relevantes sobre isso, que ele foi superficial. Embora não se deva subestimar a importância da IA nos últimos tempos, foi uma surpresa ver uma potência global dedicar a imensa maioria do seu discurso a esse tema. Em um mundo repleto de desafios, esperava-se que o Reino Unido compartilhasse os seus pontos de vista sobre outras questões, também.

Íntegra do Discurso

Senhor Presidente,

Ao nos reunirmos aqui esta noite, milhões de pessoas no Marrocos e na Líbia continuam a enfrentar as consequências de um terremoto devastador e uma inundação catastrófica.

Permita-me estender a solidariedade do povo britânico a todos aqueles que perderam entes queridos.

Nossas equipes de busca e resgate foram enviadas ao Marrocos e aumentamos nosso apoio humanitário à Líbia.

Continuaremos nosso apoio — ao lado de muitas outras nações representadas aqui nas semanas e meses vindouros.

Esta semana, nações se reuniram aqui para reafirmar o compromisso com os maiores desafios que enfrentamos.

Mudança climática, com eventos climáticos catastróficos nos dizendo para agir, agora.

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável… e como colocá-los de volta nos trilhos após a Covid.

Migração, com milhões cruzando fronteiras e mares perigosos, à mercê de traficantes de pessoas.

E a brutal invasão da Ucrânia pela Rússia… um ataque a um membro soberano das Nações Unidas por um Membro Permanente de seu Conselho de Segurança.

O mais hediondo ataque imaginável a tudo o que esta organização representa e foi fundada para prevenir.

Com consequências sentidas não apenas pelo corajoso povo da Ucrânia, mas por milhões a mais ao redor do globo.

Aqueles atingidos pela escassez de alimentos — especialmente em países em desenvolvimento — também são vítimas de Putin.

A Rússia poderia acabar com esta guerra amanhã. Putin poderia acabar com esta guerra amanhã. É isso que o mundo exige.

Mas até que isso aconteça, o Reino Unido permanecerá ao lado da Ucrânia.

Seja o que for necessário.

Por semanas, por meses — se necessário, por anos.

Porque se estas Nações Unidas — nas quais o Reino Unido acredita e ajudou a fundar — devem significar algo, certamente é pelo princípio cardinal de que a agressão não pode e não deve compensar.

Essas são as questões do momento.

Mas quero me concentrar em outro desafio.

Um desafio que já está conosco hoje e que está mudando — neste exato momento — todos os nossos amanhãs.

Vai mudar tudo o que fazemos – educação, negócios, saúde, defesa — a maneira como vivemos.

E vai mudar o governo – e as relações entre as nações – fundamentalmente.

Vai mudar esta Organização das Nações Unidas, fundamentalmente.

Inteligência Artificial – a maior transformação que o mundo já conheceu.

Nossa tarefa como governos é entendê-la, compreendê-la e buscar governá-la.

E devemos fazer isso rapidamente.

Pense em quanto mudou em poucos meses.

E pense em quão diferente este mundo parecerá daqui a cinco ou dez anos.

Estamos nos familiarizando rapidamente com a IA de hoje, mas precisamos nos preparar para a IA de amanhã.

Nesta fronteira, precisamos aceitar que simplesmente não conhecemos os limites das possibilidades.

Estamos como Edison antes da luz acender, ou como Tim Berners-Lee antes do envio do primeiro e-mail.

Eles não poderiam — certamente — ter imaginado a iluminação do skyline de Nova York à noite, ou as maravilhas da internet moderna.

Mas suspeitavam do poder transformador de suas invenções.

A IA de ponta, com a capacidade de processar a totalidade do conhecimento humano em segundos, tem o potencial não apenas de transformar nossas vidas, mas de reimaginar nosso entendimento da ciência.

Se — como eu — você acredita que os humanos estão no caminho para decifrar os mistérios das menores partículas ou das mais distantes regiões do nosso universo, se você pensa que os Problemas do Prêmio Milênio são finalmente solucionáveis, ou que eventualmente entenderemos completamente os vírus, então certamente concordará que, ao acrescentar ao somatório de nossa inteligência em escalas potencialmente vertiginosas.

A IA de ponta desbloqueará pelo menos algumas dessas respostas em um cronograma acelerado em nossas vidas.

Porque, em tempo de IA, anos são dias, até horas.

A “fronteira” não está tão distante quanto poderíamos supor.

Isso traz grandes oportunidades.

Os modelos de IA que estão sendo desenvolvidos hoje podem fornecer a eficiência energética necessária para combater as mudanças climáticas, estimular a produção agrícola necessária para alimentar o mundo, detectar sinais de doenças crônicas ou pandemias, gerenciar melhor as cadeias de suprimentos para que todos tenham acesso aos materiais e bens de que precisam e aumentar a produtividade tanto em empresas quanto em governos.

De fato, cada um dos desafios discutidos na Assembleia Geral deste ano – e mais – poderia ser melhorado ou mesmo resolvido pela IA.

Talvez o mais empolgante seja que a IA pode ser uma ferramenta democratizante, aberta a todos.

Assim como vimos a adoção digital varrer o mundo em desenvolvimento, a IA tem o potencial de capacitar milhões de pessoas em todas as partes do nosso planeta, dando a todos, onde quer que estejam, a capacidade de fazer parte desta revolução.

A IA pode e deve ser uma ferramenta para todos.

No entanto, qualquer tecnologia que possa ser usada por todos também pode ser usada para o mal.

Já vimos os perigos que a IA pode representar: adolescentes hackeando detalhes bancários de indivíduos; terroristas visando sistemas governamentais; criminosos cibernéticos enganando eleitores com deep-fakes e bots; até mesmo estados suprimindo seus povos.

Mas nosso foco nos riscos tem que incluir o potencial da IA de ponta com agência, que ao mesmo tempo supera nossa inteligência coletiva e desafia nosso entendimento.

De fato, muitos argumentam que esta tecnologia é como nenhuma outra, no sentido de que seus próprios criadores nem mesmo sabem como ela funciona.

Eles não podem explicar por que ela faz o que faz, não podem prever o que ela fará — ou não fará.

Os principais riscos da IA de ponta, portanto, virão de mau uso, desventura ou desalinhamento com objetivos humanos.

Nossos esforços precisam antecipar todas essas possibilidades — e unir-se para concordar com um entendimento compartilhado desses riscos.

É isso que a Cúpula Mundial sobre Segurança da IA que o Reino Unido está organizando em novembro buscará alcançar.

Apesar das súplicas que vimos de alguns especialistas no início do ano, eu não acredito que possamos conter a maré.

Não há futuro em que esta tecnologia não se desenvolva a um ritmo extraordinário.

E, embora eu aplauda os esforços das principais empresas para colocar a segurança no centro de seu desenvolvimento, e por seus compromissos voluntários que fornecem limites contra a implantação insegura, o tiro de largada foi dado em uma corrida global competitiva na qual empresas individuais, bem como países, esforçar-se-ão para empurrar os limites o mais longe e rápido possível.

De fato, o objetivo declarado dessas empresas é construir uma superinteligência.

IA que se esforça para superar a inteligência humana em todos os aspectos possíveis.

Alguns dos profissionais que trabalham nisso acreditam que está a apenas alguns anos de distância.

A questão para os governos é como responder a isso.

A velocidade e a escala exigem que os líderes estejam conscientes sobre as implicações e potenciais.

Não podemos nos prender a debates sobre se a IA é uma ferramenta para o bem ou para o mal; ela será uma ferramenta para ambos.

Devemos nos preparar para ambos e nos segurar contra o último.

A comunidade internacional deve dedicar sua resposta igualmente às oportunidades e aos riscos — e fazer isso com vigor e entusiasmo.

No passado, os líderes responderam aos desenvolvimentos científicos e tecnológicos com regulamentações retrospectivas.

Mas, neste caso, os trilhos de proteção, a regulamentação e a governança necessários devem ser desenvolvidos em um processo paralelo ao progresso tecnológico.

No entanto, no momento, a regulamentação global está atrasada em relação aos avanços atuais.

Os legisladores devem envolver todos — desenvolvedores, especialistas, acadêmicos — para entender antecipadamente os tipos de oportunidades e riscos que podem ser apresentados.

Devemos ser governos de ponta ao lado dos inovadores de ponta.

O Reino Unido está determinado a estar na vanguarda, trabalhando com aliados de ideias semelhantes nas Nações Unidas e através do Processo de Hiroshima do G7, da Parceria Global sobre IA e da OCDE.

O nosso país está em uma posição única.

Temos as empresas de tecnologia de ponta.

Temos universidades líderes mundiais.

E temos alguns dos maiores investimentos em IA generativa.

E, claro, temos a herança da Revolução Industrial e da revolução da computação.

Esse histórico nos dá a base para fazer da IA um sucesso e torná-la segura.

São dois lados da mesma moeda, e nosso Primeiro-Ministro colocou a segurança da IA no centro de suas ambições.

Reconhecemos que, embora, é claro, cada nação queira proteger seus próprios interesses e vantagens estratégicas, as ações mais importantes que tomaremos serão internacionais.

De fato, porque as empresas de tecnologia e atores não estatais muitas vezes têm influência e proeminência no tamanho de um país em IA, este desafio requer uma nova forma de multilateralismo.

Porque é somente trabalhando juntos que tornaremos a IA segura para todos.

Nossa primeira Cúpula Mundial sobre Segurança da IA, em novembro, iniciará este processo com foco na tecnologia de ponta.

Em particular, queremos olhar para os riscos mais sérios possíveis, como o potencial de minar a biosegurança, ou aumentar a capacidade das pessoas de realizar ataques cibernéticos, além do perigo de perder o controle das próprias máquinas.

Para aqueles que diriam que esses avisos são sensacionalistas, ou pertencem ao reino da ficção científica, eu simplesmente aponto para as palavras de centenas de desenvolvedores de IA, especialistas e acadêmicos, que disseram — e cito:

“Mitigar o risco de extinção da IA deveria ser uma prioridade global ao lado de outros riscos em escala societal, como pandemias e guerra nuclear.”

Eu não estou aqui afirmando ser um especialista em IA, mas acredito que os formuladores de políticas e os Governos ignoram esse consenso de especialistas sob o perigo de todos os nossos cidadãos.

Nossa Cúpula visa alcançar um entendimento comum desses riscos mais extremos e como o mundo deve enfrentá-los. E, ao mesmo tempo, focar em como a IA segura pode ser usada para o bem público.

A velocidade desse progresso exige que isso não seja um evento único, ou mesmo anual.

Novas descobertas acontecem diariamente, e precisamos nos reunir com mais regularidade.

Além disso, é essencial que reúnam governos com os melhores acadêmicos e pesquisadores para poder avaliar as tecnologias.

As empresas de tecnologia não devem ser as únicas a avaliar seus próprios trabalhos, assim como governos e cidadãos devem ter confiança de que os riscos estão sendo adequadamente mitigados.

De fato, uma grande parte desse trabalho deve ser sobre garantir a fé no sistema, e somente os Estados-nação podem oferecer a maior segurança nacional e a tranquilidade de que as preocupações foram atenuadas.

É por isso que me orgulho de que a Força-Tarefa de Ponta sobre a IA do Reino Unido, líder mundial, tenha reunido especialistas pioneiros como Yoshua Bengio e Paul Christiano, com o chefe do GCHQ e nossos Assessores de Segurança Nacional.

É o primeiro órgão desse tipo no mundo que está desenvolvendo a capacidade de realizar avaliações externas seguras e críticas para a construção de confiança nos modelos de ponta.

E nossa ambição é que a Força-Tarefa evolua para se tornar uma estrutura institucional permanente, com uma oferta internacional.

Construir essa capacidade em países liberais e democráticos é importante.

Muitas tecnologias de ponta foram desenvolvidas em nações onde a expressão flui abertamente e as ideias são trocadas livremente.

Uma cultura de regras e transparência é essencial para a criatividade e inovação, e é igualmente essencial para tornar a IA segura.

Então, senhoras e senhores, esse é o desafio que nos confronta.

É — em sua velocidade, escala e potencial — diferente de tudo que nós — ou nossos antecessores — conhecemos antes.

Empolgante.

Assustador.

Inexorável.

Agora devemos trabalhar – ao lado de seus pioneiros – para entendê-la, governá-la, aproveitar seu potencial e conter seus riscos.

Teremos que ser pioneiros também.

Podemos não saber onde os riscos estão, como contê-los ou mesmo os fóruns nos quais devemos determiná-los.

O que sabemos, no entanto, é que a ação mais poderosa virá quando as nações trabalharem juntas.

A revolução da IA será um teste desafiador para o sistema multilateral, para mostrar que ele pode trabalhar junto em uma questão que ajudará a definir o destino da humanidade.

Nosso futuro — o futuro da humanidade — o futuro de todo o nosso planeta, depende da nossa capacidade de fazer isso.

Esse é o nosso desafio, e esta é a nossa oportunidade.

Para sermos – verdadeiramente – as Nações Unidas.


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