DiploWiki

Discurso da Rússia na ONU em 2023: Resumo e Análise

O chanceler da Rússia, Sergey Lavrov, discursando perante o Debate Geral da Assembleia Geral da ONU, em Nova York. Imagem por UN Photo.

Em 23 de setembro de 2023, o chanceler da Rússia, Sergey Lavrov, discursou no Debate Geral da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York. Estes foram os principais pontos abordados em seu discurso:

  • O futuro está sendo moldado por uma luta entre uma “Maioria Global” e os países ocidentais, um “império de mentiras” que utiliza “métodos neocoloniais” para subjugar o resto do mundo.
  • Embora os soviéticos tenham ajudado a combater os nazistas na Segunda Guerra Mundial, logo em seguida, o Ocidente empreendeu operações contra eles. Além disso, os países ocidentais quebraram a promessa feita à Rússia de que não expandiriam a OTAN para o Leste.
  • A Rússia propôs concluir “acordos de garantias mútuas de segurança” na Europa, mantendo a Ucrânia como um estado não alinhado. No entanto, o Ocidente rejeitou isso e ajudou o “regime russofóbico de Kiev” a militarizar-se, enquanto elaborava planos para usar armas nucleares em território russo.
  • Além disso, o Ocidente está tentando atingir a China e infligir uma “derrota estratégica” à Rússia. Ele tem feito isso ao aumentar suas capacidades ofensivas — incluindo no ciberespaço e no espaço exterior — e formando alianças tanto na Europa quanto na Ásia. Esses arranjos facilitam a cooperação de países não europeus com a OTAN.
  • O Ocidente sabe que a expansão dos BRICS e da Organização de Cooperação de Xangai pode ameaçar seus interesses, mas falha porque não compreende as mesmas preocupações que a Rússia tem com relação à expansão da OTAN.
  • Atualmente, há uma “chance de verdadeira democratização dos assuntos globais”, pois o Sul Global está unindo forças em instituições multipolares. Todavia, os Estados Unidos e seus aliados estão tentando “impedir a formação de uma ordem mundial verdadeiramente multipolar e mais justa”.
  • Ademais, o Ocidente acredita que é superior a todos os outros. Por exemplo, o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, disse que a Europa é um “jardim” no meio de uma “selva”. Mas ele deixou de reconhecer os próprios problemas da Europa, como a islamofobia e a perseguição ao clero ortodoxo.
  • A Rússia é contrária a sanções unilaterais e a medidas coercitivas “ilegais”, como embargos econômicos. É por isso que exige o fim imediato de tais medidas impostas a Cuba, à Venezuela e à Síria.
  • A Rússia apoia a normalização da política internacional no Oriente Médio, embora a questão palestina ainda não tenha sido resolvida, de acordo com as resoluções da ONU. Além disso, a Rússia acredita que a reaproximação entre a Síria, a Turquia e os demais países árabes é digna de nota.
  • Na África, o Ocidente tem apoiado golpes de Estado, considerando-os “manifestações de democracia”, mas isso é um erro. Outrossim, a Rússia espera que os líbios realizem eleições em breve e se recuperem dos desastres que passaram a afligir o país após a intervenção da OTAN contra Gaddafi.
  • No Kosovo, o Ocidente está errado ao forçar os locais a negligenciarem os acordos entre os governos kosovar e sérvio. Em 2013, eles concordaram que a Comunidade de Municípios Sérvios de Kosovo teria um status especial para preservar suas tradições, mas isso não tem sido respeitado.
  • No conflito sobre a região de Nagorno-Karabakh, a Armênia e o Azerbaijão chegaram a um entendimento sobre suas respectivas soberanias. Apesar disso, a União Europeia tem desestabilizado a questão, ao oferecer-se como mediadora, em vez de aceitar o acordo celebrado localmente.
  • Embora o Ocidente tenha-se comprometido a garantir 100 bilhões de dólares anuais para programas de mitigação das mudanças climáticas, essa quantia ainda não foi alcançada. Por outro lado, os países ocidentais têm gasto muito mais dinheiro do que isso para apoiar a Ucrânia. Isso mostra uma contradição em termos de valores.
  • Instituições globais, como o FMI, o Banco Mundial e a OMC, devem ser reformadas. As Nações Unidas, seu Secretariado e seu Conselho de Segurança também devem ser reformados — afinal, eles não representam de forma adequada a “Maioria Global” de países africanos, asiáticos e latino-americanos.
  • Atualmente, iniciativas de integração e cooperação regional têm ganhado força, especialmente na África e na Eurásia. Embora isso possa tornar o mundo mais fragmentado, parece ser melhor do que ter um mundo globalizado que não é justo nem igualitário.
  • A Rússia acredita que existe uma “tendência para reabilitar os nazistas”, como exemplificado pela Alemanha, Itália e Japão, que, pela primeira vez, votaram contra uma resolução da Assembleia Geral da ONU condenando a glorificação do nazismo.
  • Em vez de dividir o mundo entre democracias e autocracias, os Estados devem esforçar-se para alcançar compromissos com relação às questões mundiais. Cabe a eles “impedir uma espiral descendente em direção a uma guerra em larga escala e evitar o colapso final dos mecanismos de cooperação internacional”.

Análise do Discurso

De todos os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, a Rússia foi, de longe, quem proferiu o discurso mais abrangente. Da reforma da governança global à guerra na Ucrânia, da situação na África à normalização das relações diplomáticas no Oriente Médio — praticamente todas as questões globais, do passado e do presente, foram interpretadas de acordo com os pontos de vista russos.

Embora conceitos como os de “países em desenvolvimento” e de “Sul Global” sejam bem estabelecidos, a Rússia inaugurou a noção de “Maioria Global”. Parece ser uma ideia muito mais confrontadora, até porque ela situa os países não ocidentais abertamente contra a “Minoria Global” do Ocidente. Entretanto, o mundo não é necessariamente caracterizado por uma luta entre maioria e minoria. Por exemplo, em outubro de 2022, a Assembleia Geral da ONU condenou a anexação russa de partes da Ucrânia. A votação da resolução teve 143 a favor, 35 abstenções e apenas 5 países contrários: Belarus, Coreia do Norte, Nicarágua, Síria e a própria Rússia. Isso prova que, em alguns casos, países ocidentais e não ocidentais compartilham pontos de vista.

Contudo, a Rússia pode ter uma preocupação legítima com a expansão da OTAN para perto de suas fronteiras. No início da Guerra Fria, a OTAN foi fundada como um meio de conter a União Soviética e impedir que a Europa Ocidental caísse sob seu controle. No entanto, mesmo após o colapso da URSS, a aliança continuou a existir. Segundo Randall Schweller, a OTAN serve para manter a “Rússia excluída” — portanto, não é surpreendente que os russos tenham profundas ressalvas à sua expansão.

Outra preocupação legítima expressa por Sergey Lavrov é aquela relativa às sanções unilaterais do Ocidente e à relutância generalizada em cumprir compromissos ambientais. É verdade que países como os Estados Unidos exaltam o multilateralismo, porém também agem por conta própria quando as instituições multilaterais não aceitam suas propostas. Também é verdade que muito se fala sobre mudanças climáticas, mas os países desenvolvidos estão atrasados na descarbonização e no financiamento de iniciativas ambientais. Todavia, nada apaga o fato de que a Rússia invadiu a Ucrânia sem qualquer autorização internacional e continua a usar, em abundância, fontes de energia poluidoras — o petróleo e o gás natural do Ártico.

No geral, a Rússia apresentou um discurso franco, mas às vezes falhou em representar com precisão a realidade dos assuntos internacionais. De fato, a hipocrisia está sempre presente no mundo, e algumas preocupações russas são válidas. No entanto, isso não significa que todos concordem com as opiniões e com os métodos da Rússia, nem que falar francamente sobre os próprios pontos de vista torne-os verdadeiros.

Íntegra do Discurso

Excelentíssimo Senhor Presidente,

Senhoras e Senhores,

Muitos dos intervenientes que me antecederam já expressaram a ideia de que o nosso planeta comum está a sofrer uma mudança irreversível. Uma nova ordem mundial está a nascer diante dos nossos olhos. Os contornos do futuro estão a ser criados por meio de uma luta, luta essa entre a maioria global, que defende uma distribuição mais justa da riqueza global e a diversidade civilizacional, e os poucos que usam métodos neocoloniais de subjugação para manter o seu domínio que lhes está a escapar.

A rejeição do princípio da igualdade e a incapacidade total de chegar a acordo têm sido há muito a sua marca registada. Habituados a olhar o resto do mundo de cima para baixo, os norte-americanos e os europeus não se coíbem de fazer promessas e assumir compromissos, inclusive escritos e juridicamente vinculativos, para depois não os cumprir pura e simplesmente. Como assinalou o Presidente Vladimir Putin, o Ocidente é um verdadeiro “império da mentira”.

A Rússia, como muitos outros países, sabe-o em primeira mão. Em 1945, quando nós estávamos a lutar, juntamente com Washington e Londres, nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial para acabar com o inimigo, os nossos aliados da coligação anti-Hitler já estavam a elaborar planos da operação militar “Impensável” contra a União Soviética. Quatro anos mais tarde, em 1949, os norte-americanos elaboraram a Operação “Drop shot” para lançar ataques nucleares maciços contra a URSS.

Estes planos loucos não passaram do papel. A URSS criou uma arma de retaliação. Embora tenha sido necessária a Crise das Caraíbas, de 1962, que colocou o mundo à beira de uma guerra nuclear, para que a ideia de desencadear uma guerra nuclear e a ilusão de a vencer deixassem de ser elementos-chave dos planos militares dos EUA.

Após o fim da Guerra Fria, a União Soviética desempenhou um papel decisivo na reunificação da Alemanha e no ajustamento dos parâmetros de uma nova arquitetura de segurança na Europa. À direção da União Soviética e, posteriormente, da Rússia foram dadas garantias políticas concretas de que o bloco militar da OTAN não se iria expandir para Leste. Esta informação consta dos registos das negociações armazenados nos nossos arquivos e nos arquivos ocidentais e que estão disponíveis para consulta. No entanto, as garantias dadas pelos líderes ocidentais foram um logro, eles não tinham nenhuma intenção de as honrar. Ao mesmo tempo, ao aproximar a OTAN das fronteiras da Rússia, eles não se sentiram constrangidos por estarem a violar grosseiramente os compromissos assumidos ao mais alto nível na OSCE de não reforçar a sua segurança à custa da segurança dos outros e de não permitir o domínio militar e político na Europa de qualquer país, grupo de países ou organizações.

Em 2021, as nossas propostas de fechar acordos sobre garantias de segurança mútuas na Europa sem alterar o estatuto de país não-alinhado da Ucrânia foram arrogantemente rejeitadas. O Ocidente continuou a militarizar sistematicamente o regime russofóbico de Kiev levado ao poder num golpe de Estado sangrento e utilizado para desencadear uma guerra híbrida contra o nosso país.

Uma série de exercícios conjuntos realizados recentemente pelos EUA e os seus aliados europeus da OTAN que tiveram, entre outras missões, a de treinar ataques nucleares contra a Federação da Rússia foi inédita desde o fim da Guerra Fria. O objetivo declarado pelo Ocidente é infligir uma “derrota estratégica” à Rússia. Os políticos irresponsáveis que se sentem impunes e, ao mesmo tempo, perdem o sentido de autopreservação estão cegos por esta ideia obsessiva.

Os países da OTAN liderados por Washington não só estão a construir e a modernizar as suas capacidades ofensivas, como também estão a tentar estender o confronto armado ao espaço exterior e ao espaço da informação.

A tentativa de alargar a área de responsabilidade da Aliança a todo o hemisfério oriental, sob o slogan manhoso da “indivisibilidade da segurança das regiões euro-atlântica e indo-pacífica” é uma nova e perigosa manifestação do expansionismo da OTAN. Para este efeito, Washington está a criar minialianças político-militares sob o seu controlo, como a AUKUS, a “troika” composta pelos EUA, Japão e a República da Coreia, o “quarteto” de Tóquio composto por Seul, Camberra, Wellington, estimulando os países membros a entabular uma cooperação prática com a OTAN, que está a implementar a sua infraestrutura no teatro do Pacífico. O vetor indisfarçável destes esforços contra a Rússia e a China e para o colapso da arquitetura regional inclusiva formada em torno da ASEAN criam o risco de um novo foco explosivo de tensão geopolítica, para além do já sobreaquecido foco europeu.

Tem-se uma forte impressão de que os EUA e o “coletivo ocidental” totalmente por ele controlado decidiram conferir à “Doutrina Monroe” uma projeção global. Estes seus planos são tão ilusórios como extremamente perigosos, mas isso não preocupa os ideólogos da nova edição da “Pax Americana”.

A minoria mundial esforça-se por abrandar o curso natural das coisas. A Declaração de Vilnius da Aliança do Atlântico Norte caracteriza a “parceria crescente entre a Rússia e a China” como “ameaça à OTAN”. Discursando recentemente perante os embaixadores franceses no estrangeiro, o Presidente francês, Emmanuel Macron, manifestou-se muito preocupado com o alargamento dos BRICS, considerando-o como prova do “agravamento da situação no cenário internacional e ameaça de enfraquecimento do Ocidente e da Europa em particular… Está em curso o processo de revisão da atual ordem mundial, dos seus princípios, das suas formas organizacionais, onde o Ocidente foi e continua a ser dominante”. O Ocidente considera como ameaça à sua posição dominante as situações se alguns países se reúnem sem ele, fazem amizades sem ele ou sem a sua permissão. O avanço da OTAN na Ásia-Pacífico é uma “coisa boa”, enquanto o alargamento dos BRICS é uma coisa perigosa.

No entanto, a lógica do processo histórico é inexorável. A principal tendência da atualidade é o desejo dos países da maioria global de reforçar a sua soberania e defender os seus interesses nacionais, tradições, cultura e modo de vida. Eles não querem mais viver a vida que os outros mandam, querem fazer amizade e comércio entre si e com o todo o mundo na condição de tudo isso ser efetuado em pé de igualdade e para benefício mútuo. Associações como os BRICS e a OCX estão em ascensão, proporcionando aos países do Sul Global oportunidades de desenvolvimento conjunto e de defesa do seu lugar digno na arquitetura multipolar que está objetivamente em vias de formação.

Talvez pela primeira vez desde 1945, ano em que as Nações Unidas foram criadas, exista uma oportunidade para democratizar na prática os assuntos internacionais. Isto dá otimismo a todos os que acreditam no primado do direito internacional e desejam ver a ONU ressurgida como órgão central de coordenação da política mundial, onde todos concordam em resolver os problemas em conjunto, com base num justo equilíbrio de interesses.

Para a Rússia, é óbvio que não há outro caminho. No entanto, os EUA e o “coletivo ocidental” por eles controlado continuam a gerar conflitos que dividem artificialmente a humanidade em blocos hostis e impedem a realização de objetivos comuns. Eles estão a fazer os possíveis para impedir a formação de uma ordem mundial verdadeiramente multipolar e justa, procurando forçar o mundo a jogar pelas suas “regras” tristemente célebres e estreitamente egoístas.

Gostaria de exortar os políticos e diplomatas ocidentais a relerem uma vez mais atentamente a Carta das Nações Unidas. A pedra angular da ordem mundial criada em resultado da Segunda Guerra Mundial é o princípio democrático da igualdade soberana dos Estados, grandes e pequenos, independentemente da sua forma de governo, estrutura política interna ou socioeconómica.

O Ocidente continua a considerar-se superior ao resto da humanidade – no espírito da já célebre declaração do chefe da diplomacia da UE, Josep Borrell, segundo o qual “a Europa é um belo jardim e tudo à sua volta é uma selva”. Ele não se sente incomodado ao ver que, neste jardim, há uma islamofobia desenfreada e outras formas de intolerância para com os valores tradicionais de todas as religiões do mundo. Atos de queima do Alcorão, insultos à Tora, perseguição de clérigos ortodoxos e outras formas de escárnio aos sentimentos dos crentes estão a ser produzidos em série na Europa.

A utilização pelo Ocidente de medidas coercivas unilaterais é uma grosseira violação do princípio da igualdade soberana dos Estados. Os países vítimas (cujo número está a crescer) de sanções ilegais sabem bem que as restrições atingem sobretudo as camadas mais vulneráveis da população, provocando crises nos mercados alimentares e energéticos.

Continuamos a insistir no fim imediato e total do bloqueio comercial, económico e financeiro dos EUA contra Havana, que não tem precedentes na sua desumanidade, e na revogação da sua decisão absurda de declarar Cuba país patrocinador do terrorismo. Washington deve abandonar a sua política de sufocamento económico da Venezuela sem quaisquer condições prévias. Exigimos que as sanções unilaterais impostas pelos Estados Unidos e pela União Europeia à Síria e que minam o seu direito ao desenvolvimento sejam levantadas. É necessário pôr termo a todas as medidas coercivas impostas sem aprovação do Conselho de Segurança das Nações Unidas, bem como à prática adotada pelo Ocidente de manipular a política de sanções do Conselho para exercer pressão sobre os governos inconvenientes.

As tentativas obsessivas de “Paxá” a agenda de todas as discussões internacionais, relegando para segundo plano toda uma série de crises regionais não resolvidas, das quais muitas se prolongam por anos e até décadas são uma manifestação flagrante do egoísmo da minoria ocidental.

A normalização total da situação no Médio Oriente não pode ser alcançada sem a solução de uma questão principal, ou seja, a resolução do prolongado conflito israelo-palestiniano com base nas resoluções da ONU e na iniciativa de paz árabe apresentada, em tempos, pela Arábia Saudita. Os palestinianos esperam há mais de 70 anos pelo Estado que lhes foi solenemente prometido, mas os norte-americanos, que monopolizaram o processo de mediação, estão a fazer os possíveis para que isso não aconteça. Apelamos a todos os países responsáveis para que unam esforços no sentido de criar condições para o reinício das negociações diretas entre palestinianos e israelitas.

Apraz ver que a Liga Árabe está a ganhar um novo alento e a intensificar o seu papel nos assuntos da região. Congratulamo-nos com o regresso da Síria à família árabe e com o início do processo de normalização entre Damasco e Ancara, que estamos a tentar ajudar juntamente com os nossos colegas iranianos. Estas mudanças positivas consolidam os esforços do formato Astana para a promoção de uma solução para a Síria com base na Resolução 2254 do CSNU e para a restauração da sua soberania.

Esperamos que, com a ajuda das Nações Unidas, os líbios possam preparar bem as eleições gerais no seu país sofredor, que há mais de uma década não consegue recuperar-se das consequências da agressão da OTAN, que destruiu o Estado líbio e abriu as portas à propagação do terrorismo na região do Saara-Sahel e migração ilegal para a Europa e outras regiões do mundo. Segundo analistas, assim que Muammar Gaddafi abandonou o seu programa nuclear militar, foi imediatamente aniquilado. Ao fazê-lo, o Ocidente criou riscos muito perigosos para todo o regime de não-proliferação nuclear.

Estamos preocupados com as ações de Washington e dos seus aliados asiáticos para fomentar a histeria na península coreana, onde os EUA estão a acumular o seu potencial estratégico. As iniciativas russo-chinesas de dar prioridade aos desafios humanitários e políticos estão a ser rejeitadas.

A trágica evolução da situação no Sudão não é mais do que outra consequência das experiências falhadas do Ocidente em exportar dogmas democráticos liberais. Apoiamos iniciativas construtivas voltadas para a resolução, sem mais delongas, do conflito interno sudanês, em primeiro lugar e acima de tudo, facilitando o diálogo direto entre as partes beligerantes.

Observando a reação nervosa do Ocidente aos recentes acontecimentos em África, em particular no Níger e no Gabão, é impossível não recordar a forma como Washington e Bruxelas reagiram ao sangrento golpe de Estado na Ucrânia em fevereiro de 2014, um dia depois de ter sido alcançado um acordo de resolução com as garantias da UE, que a oposição simplesmente espezinhou. Os EUA e os seus aliados apoiaram-no e saudaram-no como “manifestação de democracia”.

A degradação contínua da situação na província sérvia do Kosovo não pode deixar de nos preocupar. O fornecimento de armas aos kosovares e a ajuda da OTAN na criação do seu exército violam flagrantemente a resolução 1244 do Conselho de Segurança das Nações Unidas. O mundo inteiro vê como a triste história dos Acordos de Minsk sobre a Ucrânia está a repetir-se nos Balcãs. Os Acordos de Minsk previam um estatuto especial para as repúblicas do Donbass e estavam a ser sabotados abertamente por Kiev com o apoio do Ocidente. Desta feita, a UE não quer obrigar os seus protegidos do Kosovo a cumprir os acordos de 2013 entre Belgrado e Pristina sobre a criação de uma Comunidade de Municípios Sérvios do Kosovo, com direitos especiais à sua língua e tradições. Em ambos os casos, a UE atuou como garante dos acordos e estes parecem ter o mesmo destino. Qual “patrocinador”, tal resultado. Agora, Bruxelas impõe os seus “serviços de mediação” ao Azerbaijão e à Arménia, desestabilizando, juntamente com Washington, a situação no Sul do Cáucaso. Agora que os líderes de Erevan e de Baku resolveram a questão do reconhecimento mútuo da soberania dos dois países, é tempo de construir uma vida pacífica e reforçar a confiança. A Força de Paz russa contribuirá para isso de todas as formas possíveis.

Falando das decisões da comunidade internacional que permanecem no papel, apelamos à conclusão do processo de descolonização em conformidade com as resoluções da Assembleia Geral e ao fim das práticas coloniais e neocoloniais.

Um exemplo ilustrativo das “regras” que o Ocidente quer impor a todo o mundo é o destino dos compromissos por ele assumidos em 2009 no sentido de disponibilizar anualmente aos países em desenvolvimento 100 mil milhões de dólares para financiar os seus programas de adaptação às alterações climáticas. Compare-se o destino destas promessas não cumpridas com os montantes gastos pelos EUA, a OTAN e a UE com o apoio ao regime racista de Kiev. Segundo estimativas, trata-se de cerca de 170 mil milhões de dólares nos últimos 18 meses. Comparem estes montantes para ver a atitude das “democracias ocidentais esclarecidas” com os seus famigerados “valores” para com os vossos países.

De modo geral, é mais do que tempo de reformar a atual arquitetura da governação global. Há muito que esta não atende ao imperativo da época. Os EUA e os seus aliados devem abandonar a prática de restrições artificiais à redistribuição das quotas de voto no FMI e no Banco Mundial e reconhecer o peso económico e financeiro real dos países do Sul Global. O trabalho do Órgão de Resolução de Litígios da OMC também deve ser imediatamente desbloqueado.

O alargamento do Conselho de Segurança é também cada vez mais necessário, apenas para resolver o problema da sub-representação dos países maioritários da Ásia, África e América Latina. É importante que os novos membros do Conselho de Segurança, tanto os permanentes como os não permanentes, tenham credibilidade nas suas respectivas regiões e em organizações globais como o Movimento dos Não Alinhados, o Grupo dos 77 e a Organização de Cooperação Islâmica.

É altura de considerar métodos mais justos para a formação do Secretariado da ONU. Os critérios que estão em vigor há muitos anos não refletem o peso real dos Estados nos assuntos mundiais, garantindo a representação excessiva dos cidadãos dos países da OTAN e da UE. Estes desequilíbrios são ainda mais graves devido ao sistema de contratos permanentes que vinculam os seus titulares à posição dos países anfitriões das sedes das organizações internacionais, a grande maioria das quais está localizada em capitais apegadas às políticas ocidentais.

A reforma da ONU deve ser reforçada por um novo tipo de associação, onde não haja países líderes nem países liderados, não professores nem alunos, e onde todas as questões sejam solucionadas com base no consenso e no equilíbrio de interesses. Trata-se, em primeiro lugar, dos BRICS, que aumentou a sua credibilidade após a cimeira de Joanesburgo e ganharam uma influência realmente global.

A nível regional, assiste-se a uma renascença de organizações como a União Africana, a CELAC, a Liga Árabe, o CCG e outras estruturas. Na Eurásia, ganha impulso a harmonização dos processos de integração no âmbito da OCX, da ASEAN, da OTSC, da UEE, da CEI e do projeto chinês “Uma Faixa, Uma Rota”. Assiste-se à formação natural da Grande Parceria Euroasiática, aberta à participação de todas as associações e países do nosso continente comum, sem exceção.

Infelizmente, estas tendências positivas são contrariadas pelas tentativas cada vez mais agressivas do Ocidente de manter o seu domínio na política, na economia e nas finanças mundiais. É do interesse comum evitar a divisão do mundo em blocos comerciais e macrorregiões isoladas. Todavia, se os EUA e os seus aliados não estão dispostos a concordar em tornar os processos de globalização mais justos e mais equitativos, o resto do mundo terá de fazer conclusões e pensar em medidas que ajudem os outros países a não fazer depender as perspetivas do seu desenvolvimento socioeconómico e tecnológico dos instintos neocoloniais das antigas metrópoles.

O principal problema reside no Ocidente, porque os países em desenvolvimento estão dispostos a buscar um acordo, inclusive no âmbito do G20. Prova disso é a recente cimeira na Índia. A principal conclusão da cimeira é que o G20 pode e deve ser despolitizado e ter a possibilidade de fazer aquilo para o qual foi criado: elaborar medidas universalmente aceitáveis para gerir a economia e as finanças globais. As possibilidades para um diálogo e acordos existem. É importante não perder o momento. Todas estas tendências devem ser plenamente tidas em conta no trabalho do Secretariado da ONU, cuja missão, conforme estipulada nos seus Estatutos, é procurar o acordo de todos os Estados-Membros sob a égide da ONU, e não noutros lugares.

A ONU foi fundada com base nos resultados da Segunda Guerra Mundial, e qualquer tentativa de rever os referidos resultados mina os alicerces desta organização mundial. Como representante de um país que deu um contributo decisivo para a derrota do nazifascismo e do militarismo japonês, gostaria de chamar a vossa atenção para um fenómeno tão gritante como a reabilitação de nazis e colaboradores nalguns países europeus, principalmente na Ucrânia e nos países bálticos. É de especial preocupação que, no ano passado, pela primeira vez, a Alemanha, a Itália e o Japão tenham votado contra a resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre a inadmissibilidade da glorificação do nazismo. Este facto lamentável põe em causa a sinceridade do arrependimento dos referidos países pelos crimes maciços contra a humanidade durante a Segunda Guerra Mundial e vai contra as condições em que foram admitidos nas Nações Unidas como membros de pleno direito. Exortamos a que se preste especial atenção a estas “metamorfoses”, que vão contra a posição da Maioria Mundial e os princípios da Carta das Nações Unidas.

Senhor Presidente,

Hoje, como muitas vezes no passado, a humanidade encontra-se mais uma vez numa bifurcação da estrada. Cabe-nos apenas a nós decidir como a história se desenrolará. É do nosso interesse comum evitar deslizarmos para uma guerra de grandes proporções e o colapso final dos mecanismos de cooperação internacional criados por gerações dos nossos antecessores. O Secretário-Geral tomou a iniciativa de realizar uma “Cimeira do Futuro” no próximo ano. O êxito desta iniciativa só pode ser garantido por meio de um equilíbrio justo e honesto dos interesses de todos os países membros, respeitando-se o carácter intergovernamental da nossa Organização. Na sua reunião de 21 de setembro corrente, os membros do Grupo de Amigos da Carta das Nações Unidas concordaram em contribuir ativamente para alcançar este resultado.

Como afirmou António Guterres numa conferência de imprensa na véspera desta sessão, “se queremos paz e prosperidade baseadas na igualdade e na solidariedade, os líderes têm uma responsabilidade especial de se comprometerem a projetar o nosso futuro comum para o bem comum”. Uma boa resposta para aqueles que tentam dividir o mundo em “democracias” e “autocracias” e impor a todos as suas “regras” neocoloniais.


Publicado

em

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *